domingo, 5 de junho de 2016

Hellbolha Review: The Plague Dogs



Um verdadeiro mundo cão.



Eis um longa animado que me pegou de surpresa. O descobri assistindo a um vídeo no You Tube que listava os 7 longas animados mais traumatizantes do mundo. Obviamente a curiosidade me venceu e me rendi a The Plague Dogs, animação inglesa de 1982, baseado no livro homônimo de 1977 escrito por Richard Adams.

Uma das capas do livro que deu origem ao filme.

A animação conta a história de Rowf e Snitter, dois cães que fogem de um laboratório que faz testes em animais. Livres, resolvem que não mais voltarão a cair nas mãos dos "capas brancas" (como eles chamam os cientistas em seus jalecos) e resolvem que se tornarão cães selvagens, vivendo por suas próprias contas. No caminho conhecem Todd, uma espeta raposa que, inicialmente, quer se aproveitar de ambos mas acaba por simpatizar com a dupla formando um laço de amizade.


 O problema começa de verdade quando o exército resolve caçar Rowf e Snitter, pois acredita que ambos possam estar infectados com peste bubônica, já que esse era um do objetos de estudos do laboratório. As coisas só pioram quando Snitter, acidentalmente, acaba matando um homem. O objetivo do exército passa da captura para o total extermínio dos cães.

Como já deu pra notar, The Plague Dogs está MUITO LONGE de ser uma produção com toda a poesia e magia Disney. O longa é voltado para o público adulto e não poupa na crueza na hora de mostrar como a natureza e a crueldade humana funcionam. A partir daqui darei alguns spoilers, por isso, caso queira conferir o filme, esteja avisado.


A cena inicial já é extremamente desconfortável, mas consegue ser pior para quem tem cachorro. Consiste em Rowf tendo seus limites testados dentro de um tanque cheio de água e só sendo retirado de lá quando as forças abandonam seu corpo e afunda inconsciente. Ele recebe  tratamento básico e é levado. ainda inconsciente, para sua cela. 

É aqui que somos apresentados a Snitter, um simpático cachorrinho que tem um curativo na sua cabeça. O motivo para tal curativo é revelado mais adiante do filme e nos dá um soco no estomago quando Snitter consegue retirá-lo e descobrimos que ele tem uma cicatriz gigantesca no crânio, fruto de uma operação experimental que visava mexer com as noções objetivas e subjetivas do individuo. Como resultado, Snitter tem lapsos frequentes onde não consegue distinguir a realidade de sua imaginação.

Nossos heróis.

 Após um descuido do tratador do canil onde Rowf e Snitter ficam juntos de outros cães, ambos fogem e, no meio dessa fuga, temos uma pequena amostra dos horrores que locais como esse trazem até hoje: macacos presos em tubos de metal, coelhos enclausurados em caixas de aço, um pequeno rato que aperta um pequeno interruptor pois tem a noção que quando o faz, uma luz vermelha se acende e isso parece agradar os "capas brancas" que o recompensam e, talvez, o recompensem com a liberdade. Isso não é dito, mas o ponto de vista dos animais é tão bem colocado que você não consegue deixar de entender.

Outra cena que dá um nó na garganta se passa minutos antes da fuga dos nosso heróis, quando um dos cães jaz morto em sua cela. O tratador lamenta sem muito pesar e pega o corpo com uma pá para ser jogado no incinerador, como se nada fosse. Aliás, é pelo incinerador onde Rowf e Snitter encontram sua rota de fuga e, por pouco, não são incinerados junto com o pobre cachorrinho falecido.

Mas se dentro do laboratório não era fácil, fora não se mostrara menos difícil. Para sobreviver, Snitt diz a Rowf que o melhor é procurar um "mestre". Ele diz que já teve um, mas o matou. Acontece que Snitter de fato tinha um dono que o salvou de ser atropelado por um caminhão, mas acabou sendo atingido e veio a falece. Além da carregar a culpa, o desamparado Snitter foi levado para o laboratório para se tornar uma cobaia. 

Snitt e seu eterno sentimento de culpa.

A primeira tentativa de encontrar um novo mestre se dá quando ambos veem uma dupla de cães pastores guiando algumas ovelhas atá um cercado. Ao tentarem fazer o mesmo afim de impressionar o dono dos cães para que o mesmo os adotes, Rowf e Snitter acabam conseguindo o inverso, fazendo a maior bagunça que resulta na fuga das ovelhas e na ira do humano. A unica solução, então, é se virar. E, ao invés de tanger ovelhas, decidem que melhor caçá-las e comê-las, como dois verdadeiros cães selvagens fariam.  O resultado? As reclamações do dono das ovelhas acaba atraindo a atenção do exército para o local onde ambos se escondiam. É quando conhecem Todd, a raposa, que tentará ensinar  a dupla a ser mais discreta e no processo, se beneficiar com isso.

Todd só quer se aproveitar. Mas acaba sendo cativado pela dupla.

Apesar de não gozar do prestigio de uma equipe técnica Disney, The Plague Dogs nos entrega um belo trabalho. A animação, em dados momentos, lembra muito a séria animada do Superman dos irmãos Fleischer dos anos 40.As cores casam estupendamente com o visual e, muitas vezes, temos a impressão de estarmos vendo belas pinturas em movimento.

Outra das grandes sacadas do filme é raramente mostrar o rosto dos personagens humanos,nos colocando do ponto de vista dos personagens centrais e nos fazendo imergir ainda mais em seu universo. 

Rowf aprendeu, à duras penas, que o mal não precisa de um rosto. Basta andar sobre duas pernas.
Dos personagens centrais é importante frisar suas personalidades muitíssimo bem construídas. Snitter é o tipico cão bonzinho que, apesar de tudo que sofreu, não guarda rancor do homens. Isso se deve ao fato de ter tido um lar uma vez e ter experimentando o amor de um "mestre", como ele mesmo chama. A cena onde ele causa a morte de um homem por acidente ilustra bem a inocência e a falta de desconfiança de Snitter. Depois do acontecido, vemos que ele ainda  se sente culpado  pela morte de seu dono, o que o faz acreditar que tudo que ele toque está destinado a se destruir. Após tantos acontecimentos ruins, a fé nos homens de Snitter começa a se abalar e isso é mostrado em uma cena inocentemente triste: Quando a neve começa a cair e os dois, famintos e com fome, ficam sem abrigo, Snitter diz   "Eles devem ter feito isso. Para tentar nos matar, eu acho. Eles estão tentando deixar tudo muito frio para que não possamos viver".


O que Snitter tem de inocente, Rowf tem de puro rancor. Talvez por nunca ter conhecido um lar que não fosse atrás de uma grade ou sendo torturado em incontáveis testes. Essa é uma possibilidade, pois nada de concreto sabemos de seu passado. O fato é que Rowf despreza os humanos  as constantes dores que sente em suas patas são um lembrete constante do por que. Em contraponto a todo o rancor pela raça humana, Rowf nutre extremo carinho e cuidado pelo seu amigo, Snitt. Pode se dizer que ele é o líder da dupla, sempre pronto a trazer Snitt de volta a realidade quando sua cabeça o deixa confuso. Para Rowf, sobreviver é o que importa, não importa que linhas tenha que cruzar...

Rowf, um protetor ferrenho. 
Todd é o tipico malandro. Quando conhece a dupla e percebe que Rowf é pura força bruta e Snitt o interruptor que faz essa força funcionar, propões ensinar ambos a se tornarem selvagens de verdade , em troca de um pouco do que ambos conseguirem para comer. Porém, vendo a amizade, coragem e determinação de ambos, Todd cria admiração pela dupla, inclusive salvando suas vidas em dois momentos, sendo o segundo sua redenção.

Apesar do sorriso malandro, Todd tem bom coração.
O filme não tem a violência gráfica exagerada que algumas resenhas que li antes de assistir me fizeram crer. Aliás, o filme tem uma versão para o mercado americano cheio de cortes, o que me fez esperar por momentos de gore extremo. Mas a violência não chega a ser agressiva. Aliás, a violência mais chocante não é a gráfica e, sim, psicológica. Como em uma cena onde Rowf e Snitter, em meio a um violento inverno, estão magros a um ponto que um dos cães pastores de ovelha que eles encontram no inicio do filme, não os reconhece mais. Em dado momento um dos homens que os caçavam os localiza e está a ponto de matá-los. Por pouco não consegue, já que Todd faz o homem não só errar o tiro como cair do penhasco onde estava posicionado para mirar. Famintos e sem esperança de encontrar comida tão brevemente, ambos se alimentam do cadáver do seu algoz. A cena não é mostrada mas, nem por isso, se torna mas leve...


 Claro que tudo que já foi dito seria motivo mais que suficiente para que o filme garantisse seu lugar no top 7 citado no inicio do post. Mas é , com toda a certeza, o final que garante essa posição. Acontece que o filme não guarda um final musical, feliz e alegre. Ele nos entrega um final melancólico, desolador e, ainda assim, poético. Acontece que em seus delírios, vez ou outra Snitt via uma ilha onde ele e Rowf poderiam viver felizes para todo sempre. Ao final do filme, quando se veem encurralados pelo exército à beira mar, Snitt jura estar vendo a tal ilha e se põe a nada mar à dentro. Rowf, sem muita escolha e ainda tentando defender o seu amigo, se põe a segui-lo. Ambos são encobertos por uma espessa neblina que impede que os homens do exército continuem atirando em ambos. É quando em um momento de lucidez, Snitt diz " Não consigo mais nadar..." ao que Rowf responde "Tente! Você tem que continuar! Devemos estar perto da ilha!" e Snitter, já desesperançoso, retruca " Não há nenhuma ilha, Rowf!" o qual, ainda tentando proteger seu amigo no momento mais desesperador, diz "Claro que há" Está ali, não está vendo? Nossa ilha!" e ambos se perdem em meio a neblina...


O filme acaba de maneira melancólica mas uma imagem durante os créditos finais nos entrega uma fagulha de esperança: a imagem de uma ilha real. Se eles conseguiram mesmo chegar lá, fica a cargo de nossas imaginações.Talvez a desesperança que nos assola diariamente e que o filme nos joga na cara em muitos momentos nos faça crer que não. Mas o amor que nutrimos pelos dois personagens dessa cruel e sofrida aventura nos faz sentirmos como Snitter e acreditarmos que eles chegaram ao seu merecido local de descanso.




Apesar de toda a tristeza que a história que você acabou de ler possa carregar, The Plague Dogs é um filme que merece ser visto. Um filme que não só mostra a face mais escura do homem mas também mostra a dureza da natureza e, o mais importante de tudo, o valor da esperança. Garanto que depois de vê-lo, você vai querer abraçar seu cachorro.

Nota:8,5



PS: O roteirista britânico, Grant Morrison, famoso por seus trabalhos em HQs como Batman, X-Men, Liga da Justiça além de obras autorais como Os Invisíveis, sempre foi contra o maltrato de animais e aproveitou para deixar isso bem claro em sua passagem pelo título "Homem-Animal" da DC nos anos 80 e que foi lançada recentemente pela Panini. Acontece que em 2004 Morrison lançou, em conjunto com o desenhista Frank Quitely,  "WE3" que no brasil ganhou o subtítulo "Instinto de Sobrevivência", uma HQ FANTÁSTICA que conta a história de 3 animais, um cão, um gato e um coelho, que fogem de uma instalação do governo. Acontece que os 3 são ligados a poderosas armaduras tecnológicas que os tornam armas extremamente letais. A história guarda muitas semelhanças com The Plague Dogs e talvez não seja pra menos, já que Morrison adora homenagear obras clássicas em seus trabalhos. Enfim, vale a pena ser lido. Pena que é tão difícil achar por um preço acessível... 




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