Um
verdadeiro mundo cão.
Eis um
longa animado que me pegou de surpresa. O descobri assistindo a um vídeo no You
Tube que listava os 7 longas animados mais traumatizantes do mundo. Obviamente
a curiosidade me venceu e me rendi a The Plague Dogs, animação inglesa de 1982,
baseado no livro homônimo de 1977 escrito por Richard Adams.
Uma das capas do livro que deu origem ao filme. |
A
animação conta a história de Rowf e Snitter, dois cães que fogem de um
laboratório que faz testes em animais. Livres, resolvem que não mais voltarão a
cair nas mãos dos "capas brancas" (como eles chamam os cientistas em
seus jalecos) e resolvem que se tornarão cães selvagens, vivendo por suas
próprias contas. No caminho conhecem Todd, uma espeta raposa que, inicialmente,
quer se aproveitar de ambos mas acaba por simpatizar com a dupla formando um
laço de amizade.
O
problema começa de verdade quando o exército resolve caçar Rowf e Snitter, pois
acredita que ambos possam estar infectados com peste bubônica, já que esse era
um do objetos de estudos do laboratório. As coisas só pioram quando Snitter,
acidentalmente, acaba matando um homem. O objetivo do exército passa da captura
para o total extermínio dos cães.
Como já
deu pra notar, The Plague Dogs está MUITO LONGE de ser uma produção com toda a
poesia e magia Disney. O longa é voltado para o público adulto e não poupa na
crueza na hora de mostrar como a natureza e a crueldade humana funcionam. A
partir daqui darei alguns spoilers, por isso, caso queira conferir o filme,
esteja avisado.
A cena
inicial já é extremamente desconfortável, mas consegue ser pior para quem tem
cachorro. Consiste em Rowf tendo seus limites testados dentro de um tanque
cheio de água e só sendo retirado de lá quando as forças abandonam seu corpo e
afunda inconsciente. Ele recebe tratamento básico e é levado. ainda
inconsciente, para sua cela.
É aqui que somos apresentados a Snitter, um simpático cachorrinho que
tem um curativo na sua cabeça. O motivo para tal curativo é revelado mais
adiante do filme e nos dá um soco no estomago quando Snitter consegue retirá-lo
e descobrimos que ele tem uma cicatriz gigantesca no crânio, fruto de uma
operação experimental que visava mexer com as noções objetivas e subjetivas do
individuo. Como resultado, Snitter tem lapsos frequentes onde não consegue
distinguir a realidade de sua imaginação.
Nossos heróis. |
Após um descuido do tratador do canil onde Rowf e Snitter ficam juntos
de outros cães, ambos fogem e, no meio dessa fuga, temos uma pequena amostra
dos horrores que locais como esse trazem até hoje: macacos presos em tubos de
metal, coelhos enclausurados em caixas de aço, um pequeno rato que aperta um
pequeno interruptor pois tem a noção que quando o faz, uma luz vermelha se
acende e isso parece agradar os "capas brancas" que o recompensam e,
talvez, o recompensem com a liberdade. Isso não é dito, mas o ponto de vista
dos animais é tão bem colocado que você não consegue deixar de entender.
Outra cena que dá um nó na garganta se passa minutos antes da fuga dos
nosso heróis, quando um dos cães jaz morto em sua cela. O tratador lamenta sem
muito pesar e pega o corpo com uma pá para ser jogado no incinerador, como se
nada fosse. Aliás, é pelo incinerador onde Rowf e Snitter encontram sua rota de
fuga e, por pouco, não são incinerados junto com o pobre cachorrinho falecido.
Mas se dentro do laboratório não era fácil, fora não se mostrara menos
difícil. Para sobreviver, Snitt diz a Rowf que o melhor é procurar um
"mestre". Ele diz que já teve um, mas o matou. Acontece que Snitter
de fato tinha um dono que o salvou de ser atropelado por um caminhão, mas
acabou sendo atingido e veio a falece. Além da carregar a culpa, o desamparado
Snitter foi levado para o laboratório para se tornar uma cobaia.
Snitt e seu eterno sentimento de culpa. |
A primeira tentativa de encontrar um novo mestre se dá quando ambos veem
uma dupla de cães pastores guiando algumas ovelhas atá um cercado. Ao tentarem
fazer o mesmo afim de impressionar o dono dos cães para que o mesmo os adotes,
Rowf e Snitter acabam conseguindo o inverso, fazendo a maior bagunça que
resulta na fuga das ovelhas e na ira do humano. A unica solução, então, é se
virar. E, ao invés de tanger ovelhas, decidem que melhor caçá-las e comê-las,
como dois verdadeiros cães selvagens fariam. O resultado? As reclamações
do dono das ovelhas acaba atraindo a atenção do exército para o local onde ambos
se escondiam. É quando conhecem Todd, a raposa, que tentará ensinar a
dupla a ser mais discreta e no processo, se beneficiar com isso.
Todd só quer se aproveitar. Mas acaba sendo cativado pela dupla. |
Apesar de
não gozar do prestigio de uma equipe técnica Disney, The Plague Dogs nos
entrega um belo trabalho. A animação, em dados momentos, lembra muito a séria
animada do Superman dos irmãos Fleischer dos anos 40.As cores casam
estupendamente com o visual e, muitas vezes, temos a impressão de estarmos
vendo belas pinturas em movimento.
Outra das
grandes sacadas do filme é raramente mostrar o rosto dos personagens
humanos,nos colocando do ponto de vista dos personagens centrais e nos fazendo
imergir ainda mais em seu universo.
Rowf aprendeu, à duras penas, que o mal não precisa de um rosto. Basta andar sobre duas pernas. |
Dos
personagens centrais é importante frisar suas personalidades muitíssimo bem
construídas. Snitter é o tipico cão bonzinho que, apesar de tudo que sofreu,
não guarda rancor do homens. Isso se deve ao fato de ter tido um lar uma vez e
ter experimentando o amor de um "mestre", como ele mesmo chama. A
cena onde ele causa a morte de um homem por acidente ilustra bem a inocência e
a falta de desconfiança de Snitter. Depois do acontecido, vemos que ele ainda
se sente culpado pela morte de seu dono, o que o faz acreditar que
tudo que ele toque está destinado a se destruir. Após tantos acontecimentos
ruins, a fé nos homens de Snitter começa a se abalar e isso é mostrado em uma
cena inocentemente triste: Quando a neve começa a cair e os dois, famintos e
com fome, ficam sem abrigo, Snitter diz "Eles devem ter feito isso.
Para tentar nos matar, eu acho. Eles estão tentando deixar tudo muito frio para
que não possamos viver".
O que
Snitter tem de inocente, Rowf tem de puro rancor. Talvez por nunca ter
conhecido um lar que não fosse atrás de uma grade ou sendo torturado em
incontáveis testes. Essa é uma possibilidade, pois nada de concreto sabemos de
seu passado. O fato é que Rowf despreza os humanos as constantes dores
que sente em suas patas são um lembrete constante do por que. Em contraponto a
todo o rancor pela raça humana, Rowf nutre extremo carinho e cuidado pelo seu
amigo, Snitt. Pode se dizer que ele é o líder da dupla, sempre pronto a trazer
Snitt de volta a realidade quando sua cabeça o deixa confuso. Para Rowf,
sobreviver é o que importa, não importa que linhas tenha que cruzar...
Rowf, um protetor ferrenho. |
Todd é o tipico malandro. Quando conhece a dupla e percebe que Rowf é
pura força bruta e Snitt o interruptor que faz essa força funcionar, propões
ensinar ambos a se tornarem selvagens de verdade , em troca de um pouco do que
ambos conseguirem para comer. Porém, vendo a amizade, coragem e determinação de
ambos, Todd cria admiração pela dupla, inclusive salvando suas vidas em dois
momentos, sendo o segundo sua redenção.
Apesar do sorriso malandro, Todd tem bom coração. |
O filme não tem a violência gráfica exagerada que algumas resenhas que
li antes de assistir me fizeram crer. Aliás, o filme tem uma versão para o
mercado americano cheio de cortes, o que me fez esperar por momentos de gore
extremo. Mas a violência não chega a ser agressiva. Aliás, a violência mais
chocante não é a gráfica e, sim, psicológica. Como em uma cena onde Rowf e
Snitter, em meio a um violento inverno, estão magros a um ponto que um dos cães
pastores de ovelha que eles encontram no inicio do filme, não os reconhece
mais. Em dado momento um dos homens que os caçavam os localiza e está a ponto
de matá-los. Por pouco não consegue, já que Todd faz o homem não só errar o
tiro como cair do penhasco onde estava posicionado para mirar. Famintos e sem esperança
de encontrar comida tão brevemente, ambos se alimentam do cadáver do seu algoz.
A cena não é mostrada mas, nem por isso, se torna mas leve...
Claro que tudo que já foi dito seria motivo mais que suficiente para que
o filme garantisse seu lugar no top 7 citado no inicio do post. Mas é , com
toda a certeza, o final que garante essa posição. Acontece que o filme não
guarda um final musical, feliz e alegre. Ele nos entrega um final melancólico,
desolador e, ainda assim, poético. Acontece que em seus delírios, vez ou outra
Snitt via uma ilha onde ele e Rowf poderiam viver felizes para todo sempre. Ao
final do filme, quando se veem encurralados pelo exército à beira mar, Snitt
jura estar vendo a tal ilha e se põe a nada mar à dentro. Rowf, sem muita escolha
e ainda tentando defender o seu amigo, se põe a segui-lo. Ambos são encobertos
por uma espessa neblina que impede que os homens do exército continuem atirando
em ambos. É quando em um momento de lucidez, Snitt diz " Não consigo mais
nadar..." ao que Rowf responde "Tente! Você tem que continuar!
Devemos estar perto da ilha!" e Snitter, já desesperançoso, retruca "
Não há nenhuma ilha, Rowf!" o qual, ainda tentando proteger seu amigo no
momento mais desesperador, diz "Claro que há" Está ali, não está
vendo? Nossa ilha!" e ambos se perdem em meio a neblina...
O filme
acaba de maneira melancólica mas uma imagem durante os créditos finais nos
entrega uma fagulha de esperança: a imagem de uma ilha real. Se eles
conseguiram mesmo chegar lá, fica a cargo de nossas imaginações.Talvez a
desesperança que nos assola diariamente e que o filme nos joga na cara em
muitos momentos nos faça crer que não. Mas o amor que nutrimos pelos dois
personagens dessa cruel e sofrida aventura nos faz sentirmos como Snitter e
acreditarmos que eles chegaram ao seu merecido local de descanso.
Apesar de
toda a tristeza que a história que você acabou de ler possa carregar, The
Plague Dogs é um filme que merece ser visto. Um filme que não só mostra a face
mais escura do homem mas também mostra a dureza da natureza e, o mais
importante de tudo, o valor da esperança. Garanto que depois de vê-lo, você vai
querer abraçar seu cachorro.
Nota:8,5
PS: O roteirista britânico, Grant Morrison, famoso por seus trabalhos em HQs como Batman, X-Men, Liga da Justiça além de obras autorais como Os Invisíveis, sempre foi contra o maltrato de animais e aproveitou para deixar isso bem claro em sua passagem pelo título "Homem-Animal" da DC nos anos 80 e que foi lançada recentemente pela Panini. Acontece que em 2004 Morrison lançou, em conjunto com o desenhista Frank Quitely, "WE3" que no brasil ganhou o subtítulo "Instinto de Sobrevivência", uma HQ FANTÁSTICA que conta a história de 3 animais, um cão, um gato e um coelho, que fogem de uma instalação do governo. Acontece que os 3 são ligados a poderosas armaduras tecnológicas que os tornam armas extremamente letais. A história guarda muitas semelhanças com The Plague Dogs e talvez não seja pra menos, já que Morrison adora homenagear obras clássicas em seus trabalhos. Enfim, vale a pena ser lido. Pena que é tão difícil achar por um preço acessível...
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